segunda-feira, 10 de maio de 2010

ANA MARIA ASSESSORA DAS CEBS DO CEARÁ FALA NA 48ª ASSEMBLEIA DA CNBB

Ana Maria na 48ª. Assembléia da CNBB

Confesso que ao ser avisada de que deveria dar um testemunho sobre minha vivência nas CEBs nesta 48ª. Assembléia da CNBB, fiquei pensando: o que uma pessoa leiga, mulher, vinda de uma comunidade na periferia de Fortaleza poderia dizer aos bispos de todos os regionais do Brasil, numa assembléia tão importante que lhes chamasse de fato a atenção? Sempre que os senhores bispos se reúnem nessas assembléias, muitos de nós ficamos rezando em nossas comunidades, porque sabemos que delas saem muitas coisas importantes para a vida de nossas comunidades. Muitos documentos são lidos por nós em nossas reuniões e nós ficamos felizes de sermos citados por eles. É como se cada um tivesse olhado mesmo para nós e percebido nossas necessidades. Gostamos de ser consolados em nossas aflições e apoiados em nossa forma de evangelizar.
Pois bem, foi com esta motivação que vim. Nesta assembléia estamos falando de um assunto que me é muito caro. Há 27 anos tenho minha vida ligada às comunidades eclesiais de base e não consigo pensar nela de outra forma.
"Estejam sempre prontos a dar, a quem lhes pedir, as razões da esperança que vivem" (1 Pd 3, 15). Este trecho da carta de São Pedro me motiva a falar dessa minha vivência. Sou filha de uma mulher simples que passou a vida toda sendo faxineira, lavadeira de roupa e camareira de hotel e que diz sempre que para dar de comer a seus filhos se submeteu a muitas humilhações e não se arrepende disso. Meu pai era pescador e morreu cedo, devido ao alcoolismo. Os dois saíram cedo da aldeia de Canoa Quebrada no município de Aracati, em busca de dias melhores em Fortaleza. Nossa vida sempre foi de muito sacrifício, mas minha mãe sempre dizia para estudarmos, pois era a única herança que podia nos oferecer.
Foi com essa figura forte de minha mãe que cresci. Às vezes tinha a impressão de que ela era mágica, porque sempre fazia chegar às nossas mãos os livros necessários, os cadernos, alguma comida e roupa, por mais simples que fosse.
Começo falando tudo isso, porque a minha história está entrelaçada a tantas outras histórias de nossas comunidades neste Brasil todo. Sempre moramos em lugares onde os pobres a qualquer hora podiam ser retirados porque a prefeitura ou algum dono do terreno aparecia e nós éramos indenizados com um valor irrisório e tínhamos que ir para outro lugar. Foi assim que chegamos ao Conjunto Esperança na Paróquia Nossa Sra. do Perpetuo Socorro do Mondubim. Nós vínhamos de uma favela chamada Dendê. Lá, toda semana tinha um assassinato e minha mãe já estava temendo que meu irmão mais novo se envolvesse com uns meninos que estavam envolvidos com drogas. Para os senhores terem uma idéia, a grande maioria desses antigos amigos do meu irmão já morreram assassinados ou estão presos por causa do narcotráfico ou por roubo.
Então minha mãe tinha urgência em sair daquele lugar. Chegando ao Conjunto Esperança, começou um novo tempo para nós, o ar era outro. A casa agora tinha ares de nossa, pois mesmo tendo que pagar durante alguns anos, já a tínhamos como nossa. Cheguei ao conjunto com 18 anos, terminando o ensino médio. Minha irmã do meio logo se integrou à comunidade eclesial, a partir da preparação do sacramento da Crisma. Vivia me chamando para fazer parte, mas eu, que tinha me acostumado a ser a responsável pela casa desde os 8 anos de idade, não aceitei o convite a principio. Minha irmã se crismou, passou-se um ano inteiro e eu ainda em casa. Chegou o ano seguinte e os já crismados organizaram visitas aqueles que não haviam voltado à comunidade. Fui com minha irmã à Igreja e ali houve novo convite, desta vez para visitar os jovens. Convite aceito, nunca mais parei. Fui da coordenação da PJMP – Pastoral da Juventude do Meio Popular, fizemos muitos festivais da juventude, fui do conselho da comunidade, da coordenação de formação da paróquia e tantas outras missões as quais Cristo me confiou. Em todas busquei ser o mais fiel possível.
Minha comunidade, minha paróquia, sempre teve o gosto das CEBs. Lá discutimos os assuntos em conjunto e fazemos as definições depois de muita reflexão. Os padres jesuítas sempre nos ajudaram a vivenciar esse ser comunidade a partir de uma espiritualidade definida. Essa espiritualidade sempre esteve voltada para a preocupação com os pobres, para a solidariedade uns para com os outros.
Nas CEBs e em tantos outros lugares, as mulheres são sempre uma maioria ativa, que busca o seu lugar e a sua importância. O que seria de nós se não fossem as irmãs de tantas congregações inseridas em nossas comunidades que dedicam sua vida inteira para ouvir aqueles a quem ninguém ouve? Aqueles que são negados nos seus direitos básicos de ter alimentação, saúde, direito à vez e voz? O que seria de nós se não fossem tantas Marias, Neides, Elzas, Lourdinhas e tantos outros nomes que enchem as nossas comunidades de ações, exercendo coordenações, cuidando das liturgias, das caminhadas de madrugada.....
Nas CEBs aprendi a me revalorizar como pobre. Aprendi também que a pobreza como ausência do que me é básico é um pecado social, mais do que isso, é um pecado estrutural. Aprendi ainda que estes pecados estão na raiz de um sistema pecaminoso, que como cristã, devo combater, anunciando um tempo novo. Esse tempo se expressa numa sociedade sem corrupção, por isso a importância da Ficha Limpa; se expressa na valorização da agricultura familiar, daí a luta pelo limite da propriedade da terra, para que os pequenos agricultores tenham terra..., enfim, são tantas as coisas que temos que conquistar! Por isso, estamos constantemente engajados/as nas campanhas da fraternidade, nas conferencias, nas políticas públicas....
Penso que nosso maior desafio é fazer aquilo que São Paulo diz em sua carta ao Romanos, cap. 12, 2 – “não se amoldem às estruturas deste mundo, mas transformem-se pela renovação da mente, a fim de distinguir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que é agradável a ele, o que é perfeito”. Vivendo num mundo de tanta desigualdade, ousamos ser iguais em nossas comunidades. Ousamos ter uma estrutura circular, onde as decisões são tomadas a partir de reflexões feitas tendo como base a Palavra de Deus. Nossos estudos bíblicos vêm no sentido de alertar nossos irmãos e irmãs para aquilo que Deus deseja para nós. Por isso, o respeito às crianças, às mulheres, à juventude, aos idosos, aqueles que mais precisam. Nossa leitura bíblica nos leva a também fazer leitura da realidade que nos cerca.
Aprendemos que Deus revela sua verdade aos pequenos e aparentemente fracos, talvez por estes em seu sofrimento, estarem mais abertos à ação de Deus. Os que se sentem grandes já estão cheios de sua grandiosidade, não permitindo espaço para a ação de Deus. É assim, nessa sabedoria dos pequenos, que vemos multiplicar as ações de solidariedade. As CEBs, bem regadas, apoiadas, são sementeiras do sinal do Reino de Deus em nosso meio. Basta olhar para as várias experiências plantadas em todo esse Brasil. Quando nos encontramos na Ampliada ficamos sem entender como tantas ações não são conhecidas nem reconhecidas. Muitas vezes até as conhecemos com o nome de outros autores, mas não somos capazes de identificar a parceria das comunidades eclesiais de base.
Porque insistimos em sermos chamados de CEBs e não de tantos nomes pelos quais ultimamente temos sido chamados? Porque esse nome nos faz lembrar de uma história engajada de mais de 40 anos que nasce dando resposta a um contexto de falta de expressão popular, em plena Ditadura. Foi nas CEBs que muitos de nós aprendeu a falar, a dizer que todos somos Igreja participante e não uma massa que faz suas devoções de forma mecânica, induzida. Nas CEBs ousamos dizer que buscamos uma fé mais amadurecida, onde podemos dialogar de igual para igual com nossos pastores, afinal são nossos pastores, portanto próximos, pessoas queridas nossas com as quais queremos dividir nossos sofrimentos, nossas angústias, nossas alegrias, nossas conquistas. E eles, a exemplo de Jesus, serão nossas vozes quando não conseguirmos falar.
Hoje, como CEBs, sirvo às comunidades na Cáritas Arquidiocesana de Fortaleza. Levo para lá minha espiritualidade, meu jeito de ser CEBs. Sinto-me em casa, pois a Cáritas também é comunidade, enquanto grupos de pessoas com o mesmo objetivo de em nome de Deus fazer o bem àqueles que são muitas vezes negados pela sociedade, como é o caso dos catadores/as de materiais recicláveis, a quem sirvo com alegria.
A partir das primeiras comunidades cristãs, as comunidades dos apóstolos de Jesus que neste tempo de Páscoa em que temos revivendo sua memória, queremos continuar a ser comunidades comprometidas com a causa dos pequenos e assim sermos “discípulos/as e missionários/as de Cristo”. Essa memória é perigosa, nos leva a desafios, tais como a incompreensão e até à morte. Mas, o discípulo não pode ser melhor que o Mestre. Para ir em missão é preciso caminhar, ir em busca, encontrar-se com o diferente, com o outro. O outro também é desafiante, pode não nos ouvir, pode não compreender a mensagem, mas Cristo nos prometeu estar conosco até o final dos tempos. Portanto, caminhemos!