Dom Erwin Kräutler nasceu na Áustria em 1939.Tornou-se padre em 1964 e veio para o Brasil como missionário. Em 1978, tornou-se cidadão brasileiro (embora também mantendo a sua cidadania austríaca). Em 1980, foi nomeado bispo de Xingu, a maior circunscrição eclesiástica do Brasil. Em 1983 e 1991, e desde 2006 é o presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), entidade vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Em outubro de 1987, alguns meses antes da decisão de concessão de plenos direitos civis para os povos indígenas na Assembleia Constituinte, dom Erwin ficou gravemente ferido em um acidente de carro supostamente planejado. Desde 2006, o bispo está sob proteção policial por causa da ameaça de morte que tem recebido devido à sua atuação pastoral na região.
Em setembro de 2010, Dom Erwin foi um dos quatro ganhadores do Prêmio Right Livelhood 2010, um prêmio Nobel Alternativo, que honra o poder de mudança nas bases. Segundo os organizadores, o bispo recebeu o prêmio "por uma vida dedicada ao trabalho com direitos humanos e ambientais dos povos indígenas, e por seu incansável esforço para salvar a Amazônia da destruição". Dom Erwin justificou a alegria de receber o prêmio. "Não estou feliz em meu nome, mas por causa da Amazônia e dos povos indígenas que merecem esse reconhecimento!", declarou.
No mês de outubro de 2010, antes das eleições, o bispo do Xingu esteve em Maringá, no Paraná, como pregador oficial do Retiro Espiritual Anual do Clero da Arquidiocese. Na ocasião dom Erwin aproveitou para visitar a Associação Indigenísta da cidade, de onde concedeu esta entrevista a Revista ECLESIA e relata sua posição sobre a polêmica construção da hidrelétrica de Belo Monte (...)
ECLESIA: O que representa o Prêmio Nobel Alternativo que o senhor recebeu?
DOM ERWIN: Eu recebi este prêmio exatamente por causa do meu engajamento e empenho em favor da causa indígena e da Amazônia. Os índios não sobrevivem sem a floresta que é o seu habitat. Se a Amazônia for destruída os índios também são destruídos. É um caso muito sério. A Amazõnia está ameaçada e as consequências são imprevisíveis para todo o Brasil e para o Planeta Terra. A minha luta é, há muitos anos, em favor dos povos indígenas e do habitat deles.
ECLESIA: Quais são as ameaças que a hidrelétrica Belo Monte pode trazer para o povo e para a região do Xingu?
DOM ERWIN: Paira sobre nós o fantasma da hidrelétrica de Belo Monte. Infelizmente, pelo Brasil afora, ela não é conhecida como deve ser. Eu batalho para que finalmente o bom senso vença a insanidade. Estive com o presidente Lula em duas oportunidades. Ele me disse com todas as letras que não repetiria o monumento de loucura que era Balbina, perto de Manaus, maior absurdo que o Brasil já fez. Mas, pelo que vejo, estamos caminhando para um projeto talvez ainda mais insano.
ECLESIA: Em qual aspecto o senhor diz que seria "insanidade"?
DOM ERWIN: A primeira razão é que, em Brasília se diz que a área indígena não será inundada. É verdade. Mas, por outro lado, a usina vai cortar a água que hoje passa pela área. Os povos indígenas vivem da pesca e se locomovem em barquinhos e canoas. Não tendo água, não tem pesca nem locomoção; A segunda razão é que não falam do estrago que esse projeto fará para uma cidade do tamanho de Altamira que tem mais de 100 mil habitantes. Um terço da parte urbana da cidade irá para o fundo (da água). Para o povo em Brasília é um número estatístico, afinal, o que são 30 mil pessoas em comparação a 200 milhões de brasileiros? Mas para mim que sou bispo de lá, esse povo tem rosto, são crianças, são jovens, são adultos, são idosos. Eu conheço a casa deles. Até hoje eles não têm perspectiva nenhuma de onde serão reassentados. E pior, a maior parte dos habitantes da área tem sequer título de propriedade, ou seja, facilita muito que as empresas responsáveis pelo consórcio simplesmente mandem este povo embora e digam, virem-se! Isso é terrível; Terceira razão: Altamira está na margem esquerda do Rio Xingu, um rio caudaloso, bonito... O último resto do paraíso que o Brasil ainda tem. Com a formação do lago, a água invadirá a cidade e ela se transformará numa península.
O pessoal em Brasília, o setor energético do governo esquece que nós vivemos num clima tropical, nós não estamos no Paraná ou em Brasília, nós estamos na Amazônia, com clima tropical. Esse lago formado com água podre, morta, será um viveiro para tudo quanto é mosquito e praga. Vai gerar doenças endêmicas. Altamira já sofre com a dengue, com a malásia e isto tudo vai se multiplicar. Esse povo - e quando digo esse povo, falo em em mil habitantes - para onde eles vão correr?
Por fim, Belo Monte não vai funcionar durante o ano todo. Fala-se que ela vai gerar 11400 Mega Watts, mas isso vai ocorrer em apenas alguns meses. No restante do ano vai cair até um quinto do potencial porque o Xingu não tem volume d'água contínuo, depende da chuva, especialmente no verão.
Ai como tu vai pegar essa água toda para fazer funcionar essas turbinas, já que a água será levada através de um canal que funcionará aos moldes do canal do Panamá?
O governo tenta nos convencer de que um decreto garante que outras barragens não serão construídas na região. Isso é um despautério. Uma mentira. Existem outras três barragens previstas no Xingu. Eu já vi o projeto do governo. Os povos indígenas, os migrantes que foram para lá em busca de condições melhores de vida, o povo da Amazônia e o povo brasileiro não merecem isso.
ECLESIA: O senhor acredita que a região amazônica comporta empreendimentos desta natureza, como hidrelétricas e outras que tenham impactos tão fortes?
DOM ERWIN: Absolutamente não. Quero deixar claro que não estou contra só por ser contra. Também não sou contra hidrelétrica em princípio. Sou contra a maneira como se engendrou o processo lá na Amazônia, em especial, no Xingu. E eu só poderia ter esta posição porque estas obras terão efeito dominó e vão matar aquele povo. Será um golpe fatal na Amazônia. Será a morte do Xingu, dos povos indígenas. As repercussões e consequências serão imprevisíveis e irrevogáveis para todo o Brasil e o planeta Terra.
ECLESIA: O senhor vê alguma possibilidade de mudança nesse processo a partir da posse do novo governo?
DOM ERWIN: Nossa luta neste sentido já está na esfera legal. O Ministério Público Federal movimenta em torno de 15 processos que ainda não foram julgados e esses processos mexem exatamente com a inconstitucionalidade deste projeto, em vários pontos. Destaco a questão das oitivas ou audiências nas aldeias indígenas que não foram feitas. Outro aspecto é a violação da Constituição Federal no artigo 176 parágrafo primeiro. Nele é prevista que em caso de aproveitamento de recursos hídricos que banhem área indígenas, é obrigatória uma legislação específica, o que não existe até hoje no Brasil, dentre outras coisas.
Essa desgraça pode cair em cima desses povos. E eles, que serão diretamente atingidos não terão sido ouvidos, não tiveram acesso a todas as informações. As audiências públicas foram um mero ritual para inglês ver e cercada por forças de segurança como se fosse uma declaração de guerra. É coisa incrível que o Brasil não sabe, mas eu vivo lá, eu sei.
ECLESIA: Qual é a avaliação da CNBB sobre os povos indígenas no país?
DOM ERWIN: A CNBB, modéstia à parte, tem se empenhado muito e é uma das poucas instituições que volta e meia vem à tona e denuncia. Por exemplo, no estado do Mato Grosso Sul, a CNBB veio a público com toda a sua força, energia e autoridade, denunciar a desgraça vergonhosa que os povos daquele estado estão sofrendo e, certamente a CNBB neste ponto está tentando fazer a sua parte.
Fonte: Revista ECLESIA - A Igreja na era da comunicação
Ano 1 Nº 2 fev/mar 2011