quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

CEB's PATRIMÔNIO INRREMOVÍVEL DA TRADIÇÃO DA IGREJA NO BRASIL E NA AL

A consciência eclesial católica se destaca entre as outras confissões cristãs por considerar, para além das Sagradas Escrituras, também a Tradição e o Magistério como autoritativas para a orientação do Povo de Deus. Portanto, querer silenciar ou desconsiderar referenciais eclesiais já consagrados pelos documentos mais célebres do Magistério universal e continental não pode reivindicar para si o caráter de “catolicidade”: constitui-se, antes, um atentado contra um patrimônio eclesial adquirido ao longo de décadas de caminhada – e não sem penosas provações, idas e voltas, incompreensões e clarificações.
Este parece ser, lamentavelmente, o caso com relação às Comunidades Eclesiais de Base, em nossa Arquidiocese. Como se não bastassem aqueles (clérigos e leigos) que – impudicamente – trombeteiam aos quatro ventos que “CEBs são coisa do passado”, que “as CEBs estão mortas” ou que “as CEBs não dão certo na grande cidade”, tem-se iniciado, mais recentemente, uma espécie de “campanha”, liderada por alguns sacerdotes, contra a própria sigla: em certas áreas pastorais de Fortaleza ouvimos falar em “grupos de rua” (que status eclesial pode reivindicar tal expressão?!?) ou “grupos de oração” como denominação para os núcleos menores do povo cristão; em outras inventou-se uma sigla alternativa (com base em que?) conhecida por “CEVs” ou “comunidades eclesiais de vizinhança”. Quando questionados acerca destes neologismos, tais presbíteros se apressam em responder que se trata, na verdade, “da mesma coisa”, do mesmo espírito eclesial fraterno, libertador e profético das CEBs... Bom, se é a mesma coisa, então por que substituir a nomenclatura “CEB”, em primeiro lugar ???
Pois esta nomenclatura, claramente, se consagrou na Igreja da América Latina e do Brasil a partir do seu emprego em considerável número de documentos oficiais do nosso episcopado e até do Magistério Papal. Senão, vejamos: O Plano de Pastoral de Conjunto da CNBB (1966-1970) afirmava categoricamente que “a Igreja é e será sempre uma comunidade” (PPC, p.27) e acrescentava: “Faz-se urgente suscitar e dinamizar, dentro do território paroquial, comunidades de base [o destaque é nosso] onde os cristãos não sejam pessoas anônimas, se sintam acolhidas e responsáveis e delas façam parte integrante, em comunhão de vida em Cristo e com todos os seus irmãos” (PPC, pp. 38-39).
Com mais definição e função aparecem as CEBs no documento da 2ª Conferência Episcopal Latino-Americana em Medellin (1968): “A comunidade eclesial de base deve, em seu próprio nível, responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé, como também pelo culto que é sua expressão. É ela, portanto, célula inicial da estruturação eclesial e foco de evangelização e atualmente fator primordial da promoção humana e desenvolvimento” (15.III.10).
A consagração da expressão pelo Magistério Universal veio, em 1975, com a Exortação Apostólica “Evangelii Nuntiandi” de Paulo VI que dedicou às CEBs todo o longo número 58 do seu texto. Eis o trecho mais bonito: “(...) as comunidades eclesiais de base corresponderão à sua vocação mais fundamental: de ouvintes do Evangelho que lhes é anunciado e de destinatárias privilegiadas da evangelização, elas próprias se tornarão, sem tardança , anunciadoras do Evangelho” (EN 58).
O fato de “CEB” ser o nome propício para a menor parcela do povo de Deus é afirmado pelo documento da 3ª Conferência Episcopal Latino-Americana em Puebla (1979) quando qualifica assim a pequena comunidade eclesial: “É de base por ser constituída de poucos membros, em forma permanente e à guisa de célula da grande comunidade” (DP 641). – É o que o então bispo de Campina Grande, Dom Luís Fernandes, em 1984, resumia nestas singelas palavras: “CEB é Igreja local em ponto pequeno. Compromete a Igreja em ponto grande, todinha” (em: “Como fazer uma Comunidade Eclesial de Base”, p.55).
Além disso, os bispos em Puebla apontam para o “sentido social e teológico” – na terminologia de Frei Henrique C. José Matos (em: “CEBs: Uma interpelação para o ser cristão, hoje”/SP 1985, p.54) – do atributo de base: “As comunidades eclesiais de base são expressão de amor preferencial da Igreja pelo povo simples; nelas [este] se expressa, valoriza e purifica sua religiosidade e se lhe oferece possibilidade concreta de participar na tarefa eclesial e no compromisso de transformar o mundo” (DP 643). – Também este aspecto do perfil peculiar de uma CEB é corroborado por Dom Luís Fernandes quando, no capítulo 4 de seu livrinho, afirma que “só o nome não basta”: Não é qualquer grupo ou clube que é “comunidade”, nem toda comunidade é “eclesial”; muito menos qualquer comunidade eclesial pequena merece o atributo qualificativo “de base” – no sentido aqui indicado de “comprometida com a espiritualidade libertadora, profética e transformadora”. Batizar, portanto, qualquer grupo de oração de “CEB” seria “fácil demais! Assim, qualquer pinga barata vira Whisky escocês!” (Fernandes, p.43). Como tal espiritualidade, porém, não é opcional e sim, essencial para toda a Igreja, pode-se dizer que as CEBs representam o modelo de toda a Igreja ser.
O documento nº 25 da CNBB, com o título “Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do Brasil”, publicado em 1983, encontrou palavras mais enfáticas ainda: “As Comunidades Eclesiais de Base constituem hoje, em nosso país, uma realidade que expressa um dos traços mais dinâmicos da vida da Igreja (...)” (Nº1). Pouco depois arremata: “Fator de renovação interna e novo modo de a Igreja estar presente ao mundo, elas constituem, por certo, um fenômeno irreversível, senão nos detalhes de sua estruturação, ao menos no espírito que as anima” (Nº 4). – E no final do texto encorajador lemos: “As CEBs, de maneira simples mas eficaz, conseguem praticar mais intensamente as exigências da doutrina social da Igreja. Elas tornam visível o compromisso com os pobres. Sua própria existência e atuação são uma denúncia da iniqüidade social que rouba aos pobres sua voz e sua vez” (Nº 92). – Uma “Carta aos Agentes de Pastoral e às Comunidades”(Documentos da CNBB Nº33), fruto da 23ª Assembléia Geral dos Bispos do Brasil de 1985, cita como “elementos a serem conservados e aprimorados: as comunidades eclesiais de base [e] a profética opção preferencial e solidária pelos pobres” (Nº 2).

A esta altura, costuma aparecer uma velha – e gasta! – objeção: “Mas estes testemunhos vão, no máximo, até os anos 80 do século passado!” – Ledo engano, amigo! Bem recentemente, no Documento da 5ª Conferência Episcopal Latino-Americana em Aparecida/SP (2007), “constata-se em alguns lugares um florescimento de comunidades eclesiais de base (...) em comunhão com os Bispos e fiéis ao Magistério da Igreja” (Nº 99). – Na “Mensagem Final”, os bispos elogiam os esforços feitos nas paróquias “animando e formando pequenas comunidades e comunidades eclesiais de base” (p.270) e declaram: “Reafirmamos nossa opção preferencial e evangélica pelos pobres. Comprometemo-nos a defender os mais fracos, especialmente as crianças, os enfermos, os incapacitados, os jovens em situações de risco, os anciãos, os presidiários, os migrantes” (p.271).

Na mesma tecla bate Dom Clemente Isnard O.S.B., em recente publicação intitulada “A Experiência ensina o Bispo”(Recife 2009): “A organização das paróquias precisa atender a necessidade de formar as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). (...) As CEBS, sim, podem substituir a Ação Católica (...). A CEB é uma célula da Igreja e não uma associação religiosa direcionada por um carisma particular.(...) O manual da [sua] espiritualidade é o Evangelho. E chega!” (pp.103-15). – E em outro trecho incisivo, o bispo emérito de 92 anos arremata: “O futuro da Igreja no Brasil está na dependência das CEBs. Ou acordaremos para isso ou nos surpreenderemos ao ver tanta gente derivar para experiências religiosas seriamente questionáveis. As CEBs lembram o Novo Testamento. São comunidades onde os membros têm nome (...)”.
Diante destas declarações, inequívocas e freqüentes, causa-nos estranheza – a nós que formamos a Coordenação Arquidiocesana de CEBs – a desfaçatez com que membros do clero local procedem à substituição de um termo eclesiológico peculiar que pertence, há muito, ao patrimônio irremovível da Igreja no Brasil e na AL, trocando-o por expressões vagas, difusas e – sobretudo – sem tradição eclesial. A não ser que queiram, com este procedimento, distanciar-se abertamente da opção preferencial e profética pelos pobres e marginalizados, da própria espiritualidade bíblico-libertadora, do compromisso militante com a construção do Reino de Deus em meio à história humana... Neste caso, colocam-se à margem das grandes opções pastorais da Igreja na América Latina e no Brasil, como emergem nos documentos episcopais. Recomendamos, pois, a estes irmãos em Cristo a leitura edificante do livro “Mantenham as Lâmpadas Acesas” (UFC 2008), de autoria de Dom Aloísio Lorscheider, em que o ex-arcebispo de Fortaleza afirma:
“Eu sublinho ainda hoje a necessidade das Comunidades Eclesiais de Base. Sem elas nós não caminharemos. Em vez de dar tanto reforço aos movimentos chamados apostólicos, nós faríamos bem melhor se reforçássemos as CEBs, onde o povo se sente ‘povo’ (e não ‘massa sobrante’), onde pode dizer a sua palavra, ser escutado e expressar sua sabedoria” (p.135). E na página 85 o cardeal exclama: “É um desastre! O clero não acompanha as CEBs!”
Santo Aloísio, rogai por nós e por nossa Igreja...

(Carlo Tursi, teólogo, pela Coordenação Arquidiocesana das CEBs)
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